A Humilhação da Inteligência?
Assisti hoje a um seminário na internet que
dissertava sobre o conflito entre a fé e a razão. Comenta sobre a tradição
escolástica na idade média, as reformulações de Martin Lutero na reforma
protestante onde coloca teses contrárias à uma tradição filosófica denominada
escolástica. Claro que Lutero combate tal tradição com argumentos que, por sua
vez, também são filosóficos, a despeito de não se acreditarem assim, por se
apoiarem, supostamente, na revelação da palavra de Deus existente nas
escrituras sagradas.
A escolástica é um pensamento que surgiu na
idade média com o intuito de conciliar as exigências da racionalidade grega,
platônica e Aristotélica com a revelação cristã. Inicialmente a fé católica não
possuía um antagonismo radical com critérios racionais. Evidentemente,
tal perspectiva nunca foi compartilhada com o povo ficando restrita aos
teólogos e às discussões teológicas e concílios de onde se originavam as
deliberações cujo caráter admitia-se divino.
É de certa forma reconfortante observar o esforço
intelectual de filósofos cristãos, teólogos e crentes em geral ao tentarem
justificar uma fé que é tão generosa em suas vidas, que lhes dá apoio e
sustento nas horas alegres e tristes. A despeito de tais aspectos positivos,
fica uma certa inquietação ao saber que nem sempre a fé possa se apoiar na
razão e que, muitas vezes, os fatos duros da existência e a natureza lógica de
nossas indagações pareçam desmentir o que acreditamos. Muitos podem alegar que
sua fé não necessita de ciência ou razão, mas essa não é uma atitude solidária
aqueles que não podem adquirir a fé por meios não racionais. Não é nada cristã
a indiferença com um pai ou mãe que passam a descrer de Deus ao presenciarem a
morte violenta de uma filho ou filha de três anos devido a um câncer ou a uma
bala perdida. Não deveríamos ficar felizes em ter um argumento razoável dentro
de nossa fé para lhes dar? Se você disser que seu filho de três anos levou um
tiro na cabeça porque foi a vontade de Deus, e que foi melhor assim, aconselho
que você fique calado. Isso não ajuda.
As nações do primeiro mundo como Suécia,
Holanda, Japão, etc... Apresentam índices elevados de ateus e agnósticos
que chega a 60% em alguns países do primeiro mundo. Se apostarmos no
desenvolvimento científico e tecnológico das nações seremos obrigados a
observar o fim da fé ou deveríamos torcer para que o atraso econômico e
intelectual que caracteriza o terceiro mundo permaneça para sempre? O povo
europeu é extremamente hostil à tradição religiosa e este aspecto é percebido não
apenas por sociólogos mas, sobretudo, por pregadores cristãos e de outras
religiões que se aventuram nesse ambiente hostil. Tal situação não poderia ser
decorrente de religiões que se sustentam numa fé contrária à razão? Não seria o
ateísmo e o agnosticismo o resultado de imposições dogmáticas e de fatores
históricos que desmereçam os movimentos religiosos? No fundo, não seria um
problema da fé em si mesma, mas de uma fé inadequada ao avanço intelectual do
mundo?
No seminário referido no início do texto, o
teólogo relata que a fé e a razão não precisam ser totalmente dissociadas, que
algum aspecto da fé possa ser racional, mas que a razão deveria ser colocada
abaixo da fé. Ele denominou tal aspecto de: a humilhação da inteligência, nome
do seminário que ministrou. Claro que tal postura é um pouco melhor que o
dogmatismo religioso tradicional, mas não deixa de ser preocupante que para se
ter fé, precisemos nos fingir de burros, ou seja, humilhar a inteligência dada
pelo próprio Deus.
O problema é que provavelmente aceitamos a tese
de fé x razão de forma muito fácil. É certo que muitos aspectos da fé não sejam
racionais, mas não é certo que tais aspectos façam parte de uma fé verdadeira,
aliás, podem mesmo ser contrários à fé. Podemos estar acreditando em algo que
não faz parte da fé cristã ou outra fé, simplesmente, por nos apegarmos à
tradição dos religiosos que nos precederam.
Se a Bíblia condena a transfusão de sangue isto
pode, naturalmente, ser decorrente da ausência de laboratórios para a tipagem
sanguínea entre um povo que viveu há quarenta séculos atrás. Hoje, o próprio
Moisés receberia sangue se precisasse porque hoje é seguro fazer isso. O
próprio Cristo, no Novo Testamento, disse que o sábado foi feito para o homem,
mas o homem não foi feito para o sábado. Até hoje, porém, muitos
religiosos não trabalham aos sábados sob a alegação de ser condenado pela
Bíblia.
É necessário um esforço para não colocarmos as
nossas limitações intelectuais, emocionais e morais como fazendo parte da fé.
Claro que não podemos entender tudo, mas a fé não exige a aceitação de tudo.
Não é indispensável acreditar que Jonas ficou quatro dias dentro da barriga de
uma baleia, no fundo do mar e sobreviveu. Eu posso ter fé sem acreditar nisso.
O maior mandamento é amar a Deus sob todas as coisas e ao próximo como a nós
mesmos. Muitos acreditam que bastará a fé sem a caridade para a salvação, mas
não explicam como é possível amar ao próximo como a si mesmo sem ser caridoso
para com o próximo. A não ser que acreditem que amar o próximo seja,
simplesmente, ter fé em Deus.
Evidentemente, você pode acreditar em aspectos
não racionais, em ter fé em algo que aparentemente não tem sentido. É uma
escolha sua e pode em muitos casos ser uma boa escolha. O que não podemos é
exigir que a fé deva ser divorciada da razão, que outros não possam alcançar
racionalmente um motivo para fé, que outros não possam ou desejem uma fé
racional. Se eu e você não podemos ser donos da fé alheia, com certeza também
não podemos submeter a fé aos nossos caprichos, limitações de vários tipos ou,
simplesmente, a nossa falta de razão.
João Senna: Médico, Escritor, Palestrante
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