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STATUS

      POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DA HÉGIRA, NO ÚLTIMO ANO do governo da Abi-Bem, este poderoso e benemérito Califa – Alah o tenha em sua glória! – mandou distribuir trezentas e sessenta bolsas de estudo – o número exato de anos comemorados – entre várias casas de ensino, cabendo à Universidade de Soralah cerca de vinte e duas bolsas. Essas foram distribuídas entre os melhores estudantes das várias artes e ciências. Estudava eu na Faculdade Muçulmana de Calígrafos Abu-Bekr, da Universidade de Soralah, e fui contemplado com uma das bolsas, Deveria me dirigir à Universidade de Damasco, onde passaria um ano aperfeiçoando-me, recebendo, para meu sustento e mais despesas, a quantia de trezentos dinares mensais.

     Em Damasco, fui muito bem recebido e tratado com a fidalga e cativante hospitalidade dos damascenos. Já cativado com o trato não deveria me surpreender com qualquer outro gesto acrescentado de cordialidade, cortesia ou hospitalidade. Mas, ainda assim, me surpreendi, quando me foi nomeado um secretário especial para meu serviço exclusivo. O fato não só me admirou como comoveu: jamais tinha sido tratado com tamanha consideração e cuidado. 

     O Secretário me foi de grande utilidade, pois não só me orientava nos estudos, na procura dos assuntos de interesse nas várias bibliotecas da cidade, como me servia de cicerone na grande metrópole e programava e cronometrava toda minha vida – estudo, refeições, aulas, visitas, lazer – tendo sempre tudo bem anotado a tempo e a hora.

     Ora, em Soralah, ganhava eu cento e cinquenta dinares mensais, com o que, morigerado como sempre fui, vivia agradavelmente. De modo que, os trezentos dinares mensais em Damasco fizeram-me ter o passadio, dentro da minha perspectiva, de um príncipe. Resolvi reservar uma parte dos ganhos para, de volta a Soralah, reformar a minha casa, ao tempo em que, em Damasco ia enriquecendo a minha biblioteca com os manjares que me sabem melhor na vida – os livros.

     Certo dia o meu secretário pediu-me que lhe emprestasse quatrocentos dinares para safar-se, dizia ele, de um aperto. Respondi-lhe que não lhe poderia fazer um empréstimo tão avultado, já que eu percebia trezentos dinares mensais.

     - Você percebe somente trezentos dinares mensais? Perguntou ele.

     - Exatamente – respondeu.

     - Não sei como você consegue viver, rapaz, pois eu percebo mil dinares e passo dificuldades!

     Expliquei-lhe então os trezentos que eu ganhava eram mais do que suficiente para mim, pois sobravam e eu tinha, com as sobras dos poucos meses passados em Damasco, enriquecido-me com várias obras de autores eminentes e enviado, para a minha conta bancária em Soralah, cerca de duzentos dinares.

     - Você não mantém o “Status” que mantenho – disse-me.

     - Que é “status”? – perguntei.

     - Você não sabe o que é “status”?

     - Bem – disse-lhe – se “status” é viver digna e decentemente, usufruindo das coisas boas da natureza, alegre e satisfeito, conversando com quem me interessa, lento o que me agrada ou é proveitoso, comendo bem, dormindo bem, cumprindo os meus deveres sociais e sendo respeitado pelos parentes, amigos e conhecidos, já tenho um “status” acima do que desejei.

     - Não. “Status” é ocupar uma posição privilegiada acima do comum...

     - Essa eu tenho ...

     - Não tem não: para ter “status” é preciso gastar muito e acompanhar os ricos em caras diversões, beber, cortejar mulheres caras.

     - O seu “status” não serve para mim. Sei usufruir o bom e o melhor da vida sem jogar o dinheiro pela janela e arriscar tanto a saúde. O corpo de uma mulher não muda com as roupas luxuosas, ao contrario, as roupas mascaram e você, solteiro como eu, sabe quanta desilusão já ao “descascar” muito “fruto” de sua linda roupagem.  A bebida só faz envenenar o nosso organismo. As noites perdidas em farras emascula o homem, ao mesmo tempo que lhe tira o ânimo e o prazer para o trabalho quotidiano: formam-se mais “dandys” do que machos, mais libertinos que honestos, mais preguiçosos que produtivos.

     - Parece que é verdadeiro o que você afirma, mas já não posso recuar. Não posso perder “status” – disse ele.

     Nada mais lhe disse. Aleguei uma necessidade qualquer e saí da sua presença, agora preocupado comigo mesmo, pois, de volta a Soralah, dentro de poucos meses, o meu salário teria de descer de trezentos para cento e cinquenta dinares. Como estava gastando duzentos e vinte dinares, tratei, desse dia em diante, de viver dentro dos cento e cinquenta dinares, reservando todo o restante para executar o plano de reforma da casa e para aquisição de livros. Com isso continuaria dentro do meu orçamento e não viria ter, em tempo algum, a tristeza de perder “status”.

     Alahur Akbar!

 

Texto extraído do livro HISTÓRIAS DO VIAJANTE NARUM de autoria de José Lemos de Sant’Ana, médico, escritor


Digitado por Luzanira Fernandes

 

 

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