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Confissão

  ASSISTI OS ÚLTIMOS MINUTOS DE VIDA DO MEU AMIGO ABDUL MOSSAN – Alah o tenha em sua glória! – e saí emocionado, porém muito mais impressionado com as verdades que ele confessou naqueles últimos instantes.

     Abdul Mossan fora trapezista de circo, agricultor, industrial, funcionário público, construtor, viajante de miudezas, profissões que exercera efetivamente em períodos diferentes de sua vida, afora eventuais exercícios como pintor, cantor, tocador de flauta, jockey em corridas de cavalo e de camelo e até, segundo sabíamos, médico quando não os havia por perto. Conta-se que, em suas viagens, assistiu, com êxito, algumas parturientes rasgou fleimões e indicou meizinhas para tratamento de males de garganta, de bofe ou de reuma nas juntas. Era de uma admirável versatilidade, mas todos os admirávamos no destemor ao enfrentar quaisquer problemas, na coragem com que renunciava a posição, vantagens ou negócios em benefícios de outros, seus amigos, que os ambicionavam. Pode-se imaginar quantas renúncias ele praticou, sabendo-se que ao fim da vida praticamente ele não tinha um só inimigo. Possuía somente amigos, pois quanto mais envelhecia mais servia. Com a idade, aumentava-lhe a experiência e, consequentemente, a visão para os negócios e, ora um, ora outro, sob sua orientação e conselhos, investia na via prática. Era, afinal, um Mestre com M maiúsculo. Aprendia da vida e transferia para outros. Sabíamos que ele era um dos poucos homens extraordinários que Alah – como ele todo o respeito – envia para servir de exemplo à humanidade.

     Tendo atingido os 98 anos de idade com plena lucidez, sentiu  porém  que as forças, já progressivamente diminuindo há muito tempo, agora se esvaíam rapidamente . Mal dava uns passos em sua ampla residência, da varanda para a sala e para o quarto, por fim, só neste, sentado ou deitado, movendo-se pelas mãos dos outros. Logo sabido do seu estado, a sua casa tornou-se a Meca da Cidade, recebendo visitas constantes de pessoas das mais variadas partes e posições. Não só cameleiros e aguadeiros, como comerciantes, funcionários, ulemás, sheiks e cádis acorriam a sua casa para desejar-lhe melhoras. Melhoras que não vinham, já que nem os ilustres discípulos de Avicena e de Hipócrates puderam impedir a inexorável e fatal determinação da natureza - instrumento de Alah poderoso – de que a vida se encerra com a morte.

     Como é natural, e humano, os visitantes, passada a surpresa inicial, diminuíram as visitas e, quando Abdul sentiu que não podia sair, por falta de força, de seu próprio quarto, sugeriu a seus filhos que não convinha que os visitantes viessem aos seus aposentos: alegassem estar ele descansando ou dormindo ou dessem outra qualquer desculpa. Claro que seus amigos compreenderam; ao menos poderiam retribuir o quanto tinha usufruído de sua amizade, o quanto o tinham incomodado antes, não o incomodando nos últimos dias de vida. E todos passavam e perguntavam o clássico “como vai ele” e se iam, sem mais incômodos.

     Certo dia, por proposta de um prestigioso edil, governo e povo resolveram prestar-lhe uma homenagem, dando o seu nome à praça principal da cidade.  No dia marcado para a cerimônia, praticamente toda a cidade convergiu para a praça desfile infindável de oradores – cada qual preocupado mais em construir sua própria imagem diante do povo às custas do prestígio do homenageado – cansa e às vezes aborrece, preferi não lá comparecer e, ao invés disso, fui à casa de Abdul. Lá encontrei seus filhos, genros, noras e netos que se aprestavam para comparecer à cerimônia pública e um tanto preocupados pois, embora o velho estivesse “naquilo mesmo” e assistido por quatro serviçais eficientes, gostariam de ter uma pessoa de mais descortino na sua ausência.

     - Ora, não se preocupem – disse-lhes – ficarei aqui até vocês voltarem.

     Aceitaram a minha oferta e, tendo um deles me conduzido ao aposento de meu amigo Abdul, se foram todos para a festa. Ao entrar no quarto notei que Abdul dormia tranquilamente. Sentei-me numa cadeira ao lado da cama. Alguns minutos depois ele acordava e ao meu – como vai? – respondeu:

     - É você que está aí ? – e sorriu.  

     Perguntei-lhe então se precisava de alguma coisa que eu providenciasse, pois em virtudes de uma homenagem que a edilidade e o povo prestavam à sua pessoa, seus parentes tinham comparecido, embora não demorassem. E ele então falou.

     - Sei, eles me disseram. Eles sabem, como todos, que os meus dias “estão contados”. O que eles não sabem é o que hoje sei: “meus minutos estão contados”...

     - Está sentindo alguma coisa? – perguntei

     - Não. Estou consciente de tudo. Já há mais de um mês que os médicos suspenderam os remédios que já não tinham nenhum efeito sobre mim. Eles sentiram o inelutável. E hoje, mal posso falar. Sinto que tudo em mim já se foi, só as ideias ainda perduram na cabeça, mesmo assim muito confusas.

     Parou de falar, como a descansar, e a seguir continuou.

     - Há dias pedi que não permitissem que os que me visitam viessem até aqui, pois não queria que eles percebessem, em meu rosto, em meu olhar, o que se passava e ainda se passa dentro de mim. Você sabe, as visitas falam, procuram animar, dar esperança, no intento de me agradar...e todos a mentir sem perceber que eu sei o que se passa ...

     Respirou fundo e continuou, muito pausado e entrecortado:

     - Na vida enfrentei tudo... Posso dizer mesmo que fiz o que quis e acrescento que não conheci derrota... porque , enquanto se vive, não há derrotas... quando eu era trapezista de circo... quando eu vi que não dava o salto certo... já outros me ultrapassavam... fui derrotado? Não... comecei outra coisa...Parou. Respirava ofegante. Mas, continuou:

     - Trabalhei em muita coisa diferente... Ganhei? Perdi?... Não existe derrota da qual a gente não possa colher experiência para vencer adiante... mesmo quando a gente se sente envergonhado, acanhado, triste, após uma queda na vida, pode, no dia seguinte, erguer o ânimo reiniciando a mesma coisa... ou seguindo outros caminhos...

     Parou um pouco e recomeçou com a voz muito fraca. Tão fraca que precisei acurar os ouvidos.

     - Alah foi muito bom para mim, trazendo você até aqui hoje... Tenho a confessar uma coisa que não teria coragem de dizê-la nem a meus filhos...

     Senti que ele exalava o último suspiro, mas ainda consegui ouví-lo dizer:

     - Tenho vergonha de morrer... a morte é uma derrota total... sem esperança...

     E, dizendo isto, faleceu meu amigo Abdul Mossan – Alanh o tenha em sua glória.


Texto extraído do livro Histórias do Viajante Narum (4ª edição ampliada de Mala de Viajante) de autoria de José Lemos de Sant’ Ana

Médico, Empresário, Escritor.

Texto digitado por Luzanira Fernandes

 





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