DISCUSSÃO X DISCORDÂNCIA NO MOVIMENTO ESPÍRITA
O
Espiritismo não possui dogmas ou hierarquia. Não há representantes oficiais ou
iluminados que possam ser os seus intérpretes. Evidentemente, existem os que se
destacam pelo caráter, inteligência, cultura e dedicação à causa do bem, mas
tal fato não os torna oráculos infalíveis da interpretação dos textos
espíritas. Tais pessoas são indispensáveis e revelam o poder transformador da
doutrina espírita, mas o Espiritismo é de livre interpretação.
Essa
característica de nossa doutrina é um remédio contra o espírito de dominação
que tem acompanhado a psicologia dos seres humanos. Gostamos não apenas de
estar certos, mas de que todos pensem como nós pensamos. É uma atitude infantil
de difícil erradicação e creio que anime a todos em menor ou maior grau. Esta é
uma das vantagens do movimento espírita, somos livres pensadores ou, diria
melhor, pensadores livres. Esta característica desejável como princípio, poderá
permitir o surgimento de concepções contrarias à razão e ao bom senso dentro do
movimento espírita. Precisamos estar atentos para tal fato a fim de não sermos,
sem o querer, elementos de perturbação ou franca dissidência no meio espírita.
O
comportamento de muitos companheiros de doutrina, valorosos obreiros do bem,
muitas vezes se desvia do bom senso ao tentarem defender a codificacão espírita
de forma intempestiva. Da simples discordância sobre temas espíritas, passam a
fazer reparos à médiuns e instituições. Certamente é dever de consciência
defender o bem e os princípios espiritas, mas na justa medida em que
respeitamos o livre direito de expressão do nosso próximo, mesmo que suas
idéias sejam claramente absurdas e carreguem o germe da permissividade e de
desvios doutrinários graves. Não podemos fugir da urbanidade e do espírito de
fraternidade que é a essência mesma do cristianismo, sob pretexto de defender a
verdade ou aquilo que julgamos ser o correto.
Toda vez
que observarmos textos que desmereçam médiuns ou instituições através de
ataques pessoais, podemos estar certos que algo muito ruim esta ocorrendo. Se
um médium se rende à vaidade e ao personalismo, se patrocina mesmo a
permissividade moral e vulgariza a comunicação com os bons espíritos, se
transforma a palestra espirita em um show de gosto duvidoso, que podemos fazer?
O público que vai e concorda com tal espetáculo é tão ou mais culpado que
aquele que o patrocina. Não nos cabe ir em cruzada contra tais comportamentos,
embora, devamos esclarecer a quem nos recorre sobre a inadequação de se deixar
envolver por certos comportamentos e idéias.
Existe
muita diferença entre discordar de uma idéia e discutir com a pessoa que a
representa. Discordar é um fato inevitável, discutir é plenamente evitável.
A
discordância é essencialmente diferente da discussão. A primeira é o resultado
da diferença de nível intelectual e moral alcançado pelas individualidades.
Pode ser também decorrente de levarmos em conta diferentes aspectos de uma
questão ou tomarmos tal aspecto como algo absoluto.
Platão
em, O Evangelho Segundo O Espiritismo, afirma que a maioria das discussões
surge devido a palavras diferentes usadas para o mesmo conceito, ou melhor,
palavras iguais identificando conceitos diferentes sem que os interlocutores se
deem conta. É a guerra de palavras na expressão de Platão.
É natural
que, não tendo atingido niveis idênticos ou mesmo semelhantes de compreensão,
cada um de nós não tenha a mesma opinião sobre o mesmo assunto. Aprender a
conviver com a diversidade é uma arte e também um sinal de maturidade
emocional.
A
discussão é o ego tentando impor seu desejo. É o ser que, saindo da esfera das
idéias e dos nobres ideais, se dirige ao outro para desqualificá-lo. É
caracterizada, a discussão, pelo excesso de adjetivos e pela pobreza de
argumentos racionais. Ao presenciá-la lemos e ouvimos termos como: você é
radical, não tem uma visão mais ampla, é conservador, é racionalista demais ou
emotivo. Convenhamos que ninguém é racionalista demais ou honesto demais,
chamar alguém de racionalista apenas indica o nosso desejo de que esta pessoa
não seja racional ou emotiva a depender daquilo que achamos inadequado. Onde
estão os motivos lógicos ou morais para a divergência de opinião? Claramente, a
pessoa não os tem ou não soube torná-lo claro.
Allan Kardec declara que a fé inabalável seria somente aquela que pudesse encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade. Esta afirmação nos coloca bem distante de opiniões ou desejos, gostos literários ou partidarismo por uma causa que defendemos somente por que gostamos, porque aprendemos antes ou por admirar médiuns, personalidades e instituições. Não que não possam e devam existir respeito e admiração de nossa parte, mas porque na busca da verdade são elementos muitas vezes inadequados e nunca servem para um diálogo produtivo entre aqueles que, realmente, estão dispostos a ouvir o outro.
Autor JOÃO SENNA, médico, escritor, palestrante espírita
1 Comentários
Fernando
25/09/2024Excelente texto que pode ser extrapolado para tudo que estamos vivendo atualmente em termos de liberdade de expressão.