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Os ossos do cemitério

Aprovado no vestibular, necessitámos de ossos humanos para estudar anatomia. Os veteranos os vendiam. Como o nosso dinheiro era curto, como compra-los?

     Soubemos, eu e o colega Firmino, que era possível pegar ossos no cemitério de Quintas, contudo haveria a necessidade de ter um documento da Secretária de Saúde do Estado.

     A Secretaria de Saúde ficava defronte ao restaurante universitário na Vitória, onde hoje fica o Museu de Artes da Bahia. Assim, foi fácil chegar lá e propor a uma senhora que nos desse a autorização para pegar o esqueleto, aliás, dois esqueletos, um para mim, e outro para pegar o colega. Com tamanha presteza da parte dela, logo estávamos com os papéis.

     Não havia sacos plásticos na época. Para o transporte, levamos uns sacos grossos de papel pardo, provenientes do supermercado Paes Mendonça.

     Tomamos o ônibus e fomos para o Cemitério da Quinta dos Lázaros (Baixa de Quintas). Descemos nas intermediações da maternidade Tsyla Balbino e subimos a ladeira a pé. Lá nos apresentamos ao encarregado. Após ler os documentos de autorização da Secretaria de Saúde do Estado, nos encaminhou para um coveiro.

     Este pegou uma enxada e uma pá, e lá fomos nós para as covas. A primeira cova cavada era uma mulher, visto que havia cabelos pretos e compridos. Sacodiu a terra, bateu no chão para melhor limpeza, e enchemos um saco. Na próxima cova, retirados e “limpos,” os ossos foram colocados no outro saco.

     Descemos a ladeira de Quintas com os sacos, cada um com o seu. Entramos no ônibus com os ossos à amostra, uma vez que todos eles não cabiam nos sacos, se estes estivessem totalmente fechados. Os passageiros olhavam de soslaio, numa interrogação tácita. Levamos diretamente para a “mansão” da Rua da Poeira.

     Compramos uma lata de vinte litros, daquelas em que era vendido querosene, e a levamos para os fundos da casa. Fizemos uma trempe com umas pedras e colocamos fogo com madeira e gravetos que encontramos. Fervemos bastantes os ossos, depois de tê-los lavados. Um esqueleto, e depois o outro, para que os ossos não se misturassem. Pomos os esqueletos para secar no quintal. Depois de secos, cada um levou os seus ossos. Eu levei o meu para o nosso quartinho de tabique, no sótão da velha casa de D. Pequena.

     Meu irmão, quando chegou, à noite, tomou um susto, que logo foi absorvido. Dias após, o fêmur permanecia pendurado pelo meio, por um cordão, e preso nos caibros. Já nos servia de cabide para enxugar a única camisa branca que tínhamos, uma “volta ao mundo,”

 

que servia para mim, pela manhã, e para ele à noite, após lavadas as mangas e principalmente os sovacos e a gola.

     Às vezes, íamos à Feira de Santana e trazíamos uma galinha assada, que pendurávamos nesses caibros, amarrando-a pelo joelho. Meu irmão chamava aquela merenda de penosa. Não havia armários, e os ratos faziam a festa naquele sótão. Comiam até sabão. Um dia arrumei uma ratoeira, peguei uns pequenos calungas, mas apareceu um ratão e carregou a ratoeira presa pelo rabo.

     Com esses ossos, estudamos anatomia com o mestre Rafael Menezes.

     No ano seguinte, eu vendi o esqueleto a um dos calouros.

 

Texto extraído do livro Estórias de Todo Dia

De autoria de  Fernando Machado Couto. Médico, Escritor

Contato para aquisição do livro: Thyana Tel.: 071.9 9120.9337 (Postagem ou motoboy)

Texto digitado por Luzanira Fernandes

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